Neste ponto vale aprofundar a questão da performance ou do estado àkrê (bravo), pois tudo isso é mais complexo do que parece à primeira vista. De saída, é preciso dizer que essa atitude não diz respeito apenas a um estado afetivo. Ela está no cerne mesmo da relação dos Xikrin com os brancos e com os estrangeiros em geral. Mais do que isso, a questão possui conexões profundas com a própria idéia de agência e de sujeito na cosmologia mebêngôkre.
Os termos àkrê e uabô podem ser glosados como se segue: àkrê (variante djàkrê) ≈ bravo, valente, furioso, selvagem, feroz, perigoso, corajoso, irado, irritadiço; uabô (variante djuabô) ≈ manso, covarde, pacífico, dócil, domesticado, subjugado, suave, brando, gentil, humilde. Existe no corpus narrativo mebêngôkre um mito já bastante conhecido que poderíamos considerar como sendo o mito da origem da bravura e ao mesmo tempo da origem dos pássaros e dos adornos plumários. Ele faz parte da saga dos irmãos heróis e narra um episódio em que eles matam a Grande Ave Predadora Àkti, um animal sobrenatural mitológico que encarnava a máxima potência predatória, hoje atenuada nas grandes aves falconiformes (o nome desta Ave mítica designa também o gavião-real, Harpia harpyja).
Foto: acervo público via Google©
A palavra mebêngôkre àk é um termo classificatório geral para ‘ave’; mais especificamente designa também a família dos falconiformes . Àkti pode ser glosado como ‘Grande Ave’ (onde ti ≈ aumentativo, ‘grande’, ‘enorme’), epítome de todas as aves.
Antigamente os índios eram mansos, fracos e não tinham armas. Eles vivam à mercê de Àkti, o gavião gigante, que os caçava, carregava-os pelo céu até seu ninho e os devorava. Um dia uma mulher velha foi ao mato com seus dois sobrinhos pequenos para tirar palmito. Ali ela foi atacada por Àkti diante dos meninos, que fugiram aterrorizados para a aldeia. O tio dos meninos (irmão da mulher devorada pelo grande gavião), movido pelo sentimento de vingança, descobre um meio de liquidar o monstro, transformando seus sobrinhos em super-homens. Ele coloca os meninos dentro de um grotão, alimentando-os com beiju, banana e tubérculos para que cresçam bastante e fiquem fortes. Passam-se os dias e é como se os meninos fermentassem dentro d’água. Depois de um tempo, eles haviam crescido e tornado-se enormes, mais fortes e capazes que qualquer índio. Caçavam antas e outras caças grandes como se elas fossem pequenos roedores. Um dia, então, Kukry-uire e Kukry-kakô saem para caçar o Àkti, munidos de borduna, lança e um apito de taquara, armas feitas pelo tio. Ergueram um abrigo de palha no chão, de onde se via o ninho do gavião. Ao pé da árvore, havia uma pilha de restos humanos, como ossos e cabelos. Os irmãos atraíram Àkti, soprando o apito. A imensa ave descia pronta para o ataque, mas eles escondiam-se no abrigo, deixando-a desnorteada. Fizeram assim muitas vezes, deixando o pássaro cada vez mais furioso e desorientado, até que mostrou sinais de cansaço. Os irmãos, então, mataram-no com lança e borduna. Como troféu, tiraram penas de Àkti e puseram na cabeça. Cantaram. Celebraram. Depois depenaram a ave e retalharam-na em pedaços pequenos. Sopraram as penas e elas foram transformando-se em pássaro. As penas maiores deram origem as aves maiores (gavião, urubu, arara), as plumas menores deram origem aos pequenos pássaros como o beija-flor.
Esse belo mito parece me exprimir uma passagem lógica fundamental no pensamento mebêngôkre. O mito parece elaborar a idéia de que os Mebêngôkre podem deixar de estar no mundo na condição de presa (uabô), isto é, de objeto da ação de outrem (Àkti), tornando-se eles mesmos predadores (àkrê) e sujeitos da ação, isto é, agentes. No mito, os índios o fazem apropriando-se dos instrumentos da ação predatória – o próprio estado àkrê (até então exclusivo de Àkti – Ave Sobrenatural) e outras armas criadas pelo tio dos heróis. E simultaneamente criam as aves naturais (àk) dos pedaços da Grande Ave morta, fazendo-as objeto de sua própria ação,. Todavia, as plumas tomadas a Àkti e, doravante, às aves em geral, permanecerão como signo ou índice da incorporação da potência agentiva da Ave-Predadora; signo da mudança do sentido da relação agente-paciente (ou sujeito-objeto), que será revivificada no ritual. Não é à toa que todos os cocares de pena são genericamente designados pela palavra meàkà, quer dizer ‘roupa de ave’ (onde me ≈ plural; àk ≈ ave, pássaro; kà ≈ pele, couro, invólucro, roupa).
São bem conhecidos a importância da emplumação ritual e o simbolismo cerimonial da transformação em ave no universo mebêngôkre. Basta lembrar que o foco do adornamento ritual é a plumária, particularmente rica e elaborada entre os mebêngôkre (além de utilização de penugem cobrindo o corpo, casca de ovos de aves, etc). O próprio sentido das cerimônias está contido na palavra para ‘festa’ e ‘dança’ – metoro – que significa também ‘vôo’ (toro ≈ voar). Os rituais mebêngôkre, portanto, são o momento de recriação dessa passagem mítica, por meio da transformação em ave.
A ave mítica Àkti, assim como o jaguar (este outro grande predador amazônico), é a expressao lógica, a fonte cósmica originária da àkrê-ez, isto é, da capacidade de predar ao invés de ser a presa, da capacidade de assumir a posição de sujeito ao invés de objeto da ação de outrem. O mito revela como os Mebêngôkre concebem todas aves existentes na natureza enquanto partes corporificadas, vestígios, de uma grande ave potência. Àkti é o epítome do próprio espírito da predação (ou a predação em espírito).
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Numa etimologia especulativa, talvez se pudesse aventar alguma derivação entre as palavras àk (‘ave’) e àkrê (‘bravo’). Na língua mebêngôkre xiste um verbo rê ou rêrê, significando ‘tirar’, ‘arrancar’, por exemplo: no’ô rê ≈ ‘arrancar pestana (no ≈ olho, ’ô ≈ pêlo). Mas o verbo (ou outro, homônimo) também pode ter o significado de ‘irritar-se, discutir, brigar’, donde, provavelmente, kurê ≈ ‘odiar, detestar’, kurê djwöj ≈ ‘inimigo’, ‘aquele que é odiado/odeia’. Daí, quem sabe àkrê tenha tido o sentido de ‘brigar com ave, odiar ave, ter ave por inimigo’, ou mesmo ‘extrair ave’, imbuir-se de um certo ‘estado-ave’.
O mito estaria, assim, estabelecendo algumas condições sob as quais a ação humana (dos Mebêngôkre) pode operar. Adquirida a capacidade de assumir o ponto de vista do sujeito por meio da ação predatória sobre um outro, bem como das qualidades e instrumentos desta ação (o estado àkrê), os Mebêngôkre podem então continuar, por meio de novas ações, seu processo de aquisição de outras capacidades diferenciais, oriundas de outros seres, objetivadas em outros signos – capacidades que serão parte também do seu processo de constituição enquanto um tipo de gente específico, capaz de se reproduzir e seguir vivendo.
Outros mitos tratam do estabelecimento de outras condições não menos fundamentais de existência. Por exemplo, a narrativa da obtenção do fogo, roubado à Onça mitológica e, conseqüentemente, da origem cozinha (ver Lévi-Strauss, O cru e o cozido, 1971) fala de outro pré-requisito de distinção entre humanos e animais: doravante, parece propor o mito, após a aquisição da capacidade de cozer a carne, eliminando (ou secando) o sangue, que é o veículo da alma (karon) dos seres vivos, torna-se possível aos índios comer os animais, sem que isso implique na absorção da potência subjetiva desses últimos. Consumir o sangue ou a carne crua significa consumir a alma, ou a parte ativa do ser, sua subjetividade. Isto resultaria em uma metamorfose mortífera de quem come. O cozimento é o que permite ingerir a carne da caça sem incorporar seu espírito vital, o karon. O que equivale a dizer que o cozimento permite a dessubjetivação do animal caçado. Deixar-se penetrar pelo karon do outro resultaria numa luta, no interior do corpo, pelo ponto de vista do sujeito: um único corpo passa a ser suporte para mais de um ponto de vista. Para o consumidor de sangue ou carne crua, há o enorme risco de ser tomado pela subjetividade da presa e, conseqüentemente, de tornar-se objeto daquele ponto de vista: condenado subitamente a transformar-se de predador em presa e morrer. Esta mesma condição de presa que se expressa na condição dos Mebêngôkre subjugados pela Ave Predadora Àkti, no outro mito .
Há, por conseguinte, uma estreita correlação entre o mito de origem do fogo (que fala do roubo de uma capacidade antes restrita ao Jaguar miotlógico), e a história de Àkti: ambos tematizam idéias mebêngôkre sobre a importância de predar e não ser predado – ser o predador, e não a presa –, estabelecendo determinadas condições para viabilizar a existência; condições que são, também, técnicas e modos de operar sobre o mundo.
O estado de pura mansidão (uabô puro), por assim dizer, é o estado potencial da presa. Implica ausência total de capacidade de predação e, em última instância, de agência ou subjetividade. Se hipoteticamente atingido, tal estado é absolutamente insustentável, significando nem mais nem menos que a morte, como o mito de Àkti descreve. Para viver, é preciso ser capaz de se tornar predador e, portanto, de se tornar bravo (àkrê). Entretanto, como outros episódios da saga dos irmãos heróis parece explicitar (ver paticularmente Lux Vidal, Morte e vida de uma sociedade indígena brasileira, 1977, p.229), é preciso impor limites à qualidade àkrê e à ferocidade, pois, se descontroladas ou incontidas, também conduzem à morte, na medida em que não permitem constituir o parentesco, promovendo a destruição por autopredação generalizada.
Não ser capaz de dosar a força àkrê tem como efeito a predação constante sobre o outro e a impossibilidade de reconhecer nele um corpo comum, uma identidade, uma comunidade. Ser bravo é não ouvir (kuma ≈ ouvir, atender, entender) os parentes. Por isso, os Xikrin costumam dizer que uma pessoa muito feroz, um guerreiro tomado de fúria, por exemplo, “não escuta, é surdo” (amakre kêt ≈ literalmente ‘sem ouvido’). É como se seu corpo fosse um corpo de fera, de onça, ou como se ela já estivesse quase saindo do seu estado corpóreo: não sente dor, não sente fome, não sente medo, não desvia dos obstáculos na mata, anda sempre em frente, em linha reta, atravessando cipoal, galhos, tudo. Puro espírito da predação. Não é por outro motivo, também, que os animais-símbolo da qualidade àkrê sejam animais solitários como o gavião-real e o jaguar.
Em resumo, ambos estados, àkrê e uabô, possuem dois aspectos ou potencialidades: um positivo, produtivo e criativo; outro negativo e destrutivo. A primeira permite a posição de sujeito, de predador (e não de presa). É uma qualidade adequada para o relacionamento com a alteridade, com forças cósmicas e naturais. É a qualidade da ‘alter-objetificação’ e da ‘auto-subjetificação’. No limite, ela impede a auto-objetificação, necessária para a constituição de parentes, de corpos mutuamente reconhecíveis e identificáveis como o mesmo. Eis, portanto, a necessidade de uma força em sentido inverso, a qualidade uabô que, no limite, impede a auto-subjetificação. Esta capacidade de ser manso é adequada à criação de relações de identidade e de comunidade. É, ao contrario da primeira, a qualidade da ‘auto objetificação’ e da alter subjetificação’.
Imagem: Sergio Macedo, Xingu!, 2007
A vida mebêngôkre, portanto, depende de um equilíbrio entre esses dois estados ou qualidades. Por isso mesmo, eles não podem ser igualmente distribuídos entre as pessoas. Mulheres, no geral, devem ser mais uabô; homens, mais àkrê; chefes precisam ser àkrê, mas devem, ao mesmo tempo, exercer a generosidade, aprendendo a ouvir e ponderar; feiticeiros e xamãs também são àkrê e assim por diante. E essas características são efetivamente produzidas nas pessoas, através de uma série de procedimentos controlados de transformação afeto-corporal, a que são submetidas desde criança, e que incluem: ingestão de certos alimentos, ordálios e provas de fogo (no caso da qualidade agressiva); desenvolvimento da audição, do entendimento e do respeito/vergonha (pia’àm), enfim, de uma moralidade comunitária (no caso da qualidade domesticada ou mansa).
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