Nas últimas semanas, os principais jornais do país noticiaram o imbróglio entre os índios Xikrin e a Companhia Vale do Rio Doce, em Carajás no Pará.
Os Xikrin são cerca de 900 índios, 80% dos quais com menos de 30 anos. Apenas uma pequena parcela fala fluentemente o português. Eles foram contatados nos anos 1950, sofreram perdas demográficas na década seguinte, e viram-se reduzidos a menos de cem pessoas. Recuperaram-se custosamente e agora enfrentam os enormes desafios – econômicos, políticos, culturais e existenciais – de viver na Amazônia em tempos de globalização.
No dia 01 de novembro de 2006, a CVRD anunciou a suspensão do apoio financeiro aos Xikrin em virtude da invasão de suas instalações pelos índios, dias antes. O auxílio está previsto desde 1989,quando a CVRD, atendendo à resolução 0331/86 do Senado Federal, firmou com os Xikrin e com a Funai o Convênio 453/89. Este prevê assistência à comunidade como forma de minorar os impactos ambientais causados pelas operações minerárias da empresa na área que é hoje a Floresta Nacional de Carajás, limite à terra indígena. Tal obrigação foi reiterada pelos decretos presidenciais 1298/94 (Art. 1º §2, item d) e 2486/98 (Art. 2º, parágrafo único).
Há uma brutal desproporção de forças entre a CVRD e os índios. Soa absurda a tentativa da companhia de incriminar a comunidade. Mais absurda ainda, e exagerada, é sua decisão de denunciar o caso à Organização dos Estados Americanos. A empresa sabe perfeitamente que os Xikrin não representam a ameaça alegada.
As discordâncias são antigas e giram em torno do dinheiro. Os índios consideram insuficientes os repasses e afirmam que só são ouvidos quando promovem atos de protesto. A CVRD vem ultimamente desqualificando as demandas indígenas e diz que não negocia sob pressão.
Em todo caso, é fundamental entender que as reivindicações dos índios por dinheiro e bens não são resultado de aculturação. Os Xikrin não são índios capitalistas, oportunistas ou degenerados. Sua busca por mercadorias obedece a uma lógica cultural própria. Ela está em continuidade com a forma tradicional pela qual os Xikrin relacionam-se com não indígenas e estrangeiros: incorporando de fora novos conhecimentos e capacidades técnicas e estéticas, e convertendo-os internamente em valor, por meio de uma sofisticada economia ritual e simbólica.
Quando essa dinâmica sociocultural depara-se com um universo de mercadorias e objetos produzidos em escala industrial, surgem efeitos complexos e inesperados para os próprios índios. O principal deles é o que poderíamos ver como uma espécie de “inflação” indígena: a rápida depreciação do valor dos objetos no interior da sociedade xikrin, criando novas demandas em espiral. Assim, apesar de perfeitamente legítimo, o consumo crescente que se vê entre eles tem resultados às vezes desvantajosos. Os Xikrin passam por um momento crucial e delicado.
Os responsáveis pelos assuntos indígenas da CVRD deveriam ter inteligência e sensibilidade para perceber que não estão em jogo apenas toneladas de minério ou alguns milhões de dólares, mas a vida de uma população humana, minoritária, que luta para sobreviver e manter seus valores e expectativas em um contexto histórico de mudanças rápidas e grande impacto.
A CVRD não é vítima dos Xikrin. Tampouco eles são vítimas da companhia. Mas é preciso um grande esforço para superar os mal-entendidos culturais e fazer com que a relação não seja de confronto, mas de cooperação. Para tanto, a companhia precisa sair de sua passividade cômoda, assumindo responsabilidades proporcionais ao seu tamanho.
(Escrito e publicado originalmente em Dezembro de 2006)
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